MINHA MÃE


Claudia Paixão Etchepare


A memória de minha mãe chega de mansinho, como um doce desconforto no peito. Primeiro, ela escapa do cantinho que habita e depois, ah depois, sem pedir licença, ela encilha o meu coração e sai com ele a galope solto.

Algumas pessoas simplesmente existem. Outras escrevem seus próprios roteiros de vida.
Quando soube que seus sonhos não cabiam mais naquela casa, naquela rua, naquela cidade, migrou para capital com a família. Tinha a dimensão exata do que abdicava e do que buscava.
Nós desconhecíamos a envergadura de suas asas.
Seguia em frente. Sempre. Pouco falava das sendas de sua vida no interior. Gostava das opções da cidade, gostava de gente bonita e inteligente, tomava champagne no meio da tarde e se emocionava com o belo.

Sua porção pássaro vislumbrava muita coisa lá do alto. Era, também, um pouco leoa. Tinha um plano e o executou ferozmente. Hábil no manejo da vida, soube viabilizar caminhos, trabalhou muito e recheou nossas vidas, dos 5 filhos, com boa educação, cultura e requinte.

Por muitos anos, ela e meu pai tiveram uma parceria sólida e frutífera. Construiu a bela casa que sonhou. Nela vivi a efervescência da minha juventude com sua presença sempre muito alegre no convívio social.
Vivemos momentos preciosos no sítio de lazer, onde ela extravasava seus talentos, que não eram poucos.

Naqueles anos intensos costuramos vivências fecundas que se perpetuam até hoje nas histórias contadas nas reuniões de família, com um toque de humor e magia.
Ela era a arquiteta maior destes momentos.

Às vezes, tomava feição de passarinho ferido, arrastando asa quebrada, quando não tinha forças para conseguir o que queria. E perguntávamos: E aí, mãe, tudo bem? E ela respondia ‘tuuuudo bem’, com o u bem longo. E todos fingíamos que estava tudo bem. Sua porção leoa ocultava dissabores para nos proteger.

Se fosse um quadro, seria uma pintura de mulher garbosa dançando flamenco e soando suas castanholas com giros rebuscados das mãos. Era bonita e elegante. Em todas as fases da vida. Não seria ela se não tivesse um risquinho no olho e batom nos lábios. Enfrentou os revezes da vida assim, de salto alto e batom. Um por um.
Guerreira. Usou o seu fino humor e muita coragem quando dias cinzas se infiltraram em nossas vidas coloridas. Tenho muito orgulho de ser cúmplice eterna das passagens que com ela vivi. A imagem do seu sorriso largo com dentes alvos ainda me inunda quando penso nela.

Aos 67 anos, ascendeu no seu voo mais alto e transcendeu.
Morreu pássaro. Não na forma que arrastava a asa quebrada. Morreu pássaro migratório que chega altivo ao seu destino, exaurida pela travessia, mas com a missão cumprida de conduzir a revoada para uma condição melhor.

Seu legado maior?
Esta força propulsora que habita o meu coração e que de mim brota, forte, quando eu mais preciso.


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Claudia Paixão Etchepare

E-mail: claudia.paixao.etche@gmail.com

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