VENEZA


Claudia Paixão Etchepare

Nunca abra mão de uma entrada triunfal em Veneza. Afinal, dizem que ela vai acabar.
Alugue um táxi-lancha ao chegar, aquelas lanchas revestidas de madeira, com bancos de couro beige, tipo 007, e parta rumo ao seu hotel. Todos os grandes hotéis de Veneza têm os seus próprios pontos de atracagem. O estilo de hospedagem não pode fugir à linha: nada de hotéis modernos, deixe-os para outros locais. Uma suíte em um legítimo palacete veneziano,com terraço sobre o mar ou sobre a Piazza San Marco é a mediada certa.

Nesta cidade, vivemos cenas cinematográficas em cada esquina, a qualquer hora. Quando fomos assistir à peça Il Barbiere di Siviglia, no ciclo Música al Palazzo, deparamo-nos com um singelo prédio escondido em um ângulo irregular da praça, com praticamente nenhuma atração externa. Revelou-se, no entanto, um verdadeiro palácio no seu interior. O espetáculo é apresentado de forma ambulante, com cenas em diferentes cômodos, acompanhadas por música ao vivo. O piano e outros instrumentos são transportados de sala em sala.

Nela nada é estático, tudo se movimenta. Poderia discorrer a respeito de sua gastronomia, arquitetura, arte e história. Mas vou ater-me simplesmente à geografia pulsante de uma cidade cujas ruas são líquidas.

Veneza ocupa um braço do Mar Adriático, a lagoa de Veneza. Ali a vida flui nos canais de diferentes calibres interligando pequenas ilhas por pontes. Algumas são peças artesanais de madeira sobre vãos de apenas três passos de largura, outras possuem lances de escada em suas extremidades, e as majestosas são construídas de pedras em um único arco.

O ecoar de vozes e o repicar de passos são os sons da cidade.O transitar na cidade continua a ser, como foi em séculos passados, a pé. Bicicletas, skates e afins são proibidos. Nos canais internos, os motores das pequenas embarcações não produzem ruído, elas ronronam como gatos. Tomando um chá em uma xícara de Limoges, sempre vislumbramos ao fundo a ponta de uma gôndola indo ou vindo, refletidas nas elegantes vitrines das lojas. Descobri um segredo: o passeio de gôndola, o mais romântico dos passeios do mundo, deve ser feito ao entardecer, com um espumante – ou um Bellini - em mãos.

Partimos ainda dia. Quando o gondoleiro já havia mostrado onde Marco Polo morou e onde Don Juan se encontrava com suas namoradas, o lusco fusco instalou-se. As luzes das casas iluminaram-se. Os sons da cidade aquietaram-se e lembro de poder ouvir as conversas dos venezianos dentro de suas casas. Vi através de uma genuína janela veneziana, com suas altas folhas abertas em par, uma família jantando reunida à mesa. O passeio terminou noite fechada e o breu de Veneza envolveu-nos. A experiência foi intensa e perturbadora.

Saindo do espaço labiríntico do centro histórico há ilhas interessantes no entorno. De Murano, onde artesãos sopram estilosas peças de vidro ou cristal, tenho uma peça icônica exposta na sala de minha casa: um peso de papel feito de um bloco maciço de vidro azul intenso trabalhado com a técnica millefiore, pequenos pingos achatados multicoloridos feito flores pontilhando um jardim. Amo tocá-la. Esta técnica de soprar cristais é milenar e reporta à pujança de Veneza quando era um próspero centro mercantil e naval. Toldos listrados e casas pintadas de cores intensas encontram-se nas pequenas ilhas de Burano. Lá, as portas da frente das casas têm cortinas esvoaçantes com proteção da entrada. Do artesanato das rendeiras, tenho uma echarpe de linho branco com delicada renda nas pontas, uma obra de arte que lanço sobre os ombros ao entardecer dos verões e me lembro da colorida Burano, a cidade que parece uma maquete.

E, assim, os encantos insulares da região poderiam ser narrados por mil e uma noites.

A geografia de Veneza conspira para a atmosfera de romance. Histórias murmuradas pelas águas revelam segredos encrustados em suas pedras castigadas pela erosão. Veneza não esconde o romance que vive com o Mar Adriático. Chega um momento que não sabemos mais se se trata de uma cidade com mar, ou de um mar com uma cidade. Eles se fundem no protagonismo da história.

Mas cientistas estimam que Veneza poderá afundar até 2100, dando um fim a todos estes encantos. Eu estimo que, se isto acontecer, será o início de uma outra história, aquelas contadas com um misto de mistério e mágica por gerações e gerações: A historia da Velha Dama da Laguna eternamente feliz, submersa nos braços do seu amor.




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Claudia Paixão Etchepare

E-mail: claudia.paixao.etche@gmail.com

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