FRONTEIRAS


Claudia Paixão Etchepare

Ah, fronteiras ! Dizem que são linhas divisórias onde o desconhecido se apresenta, a ser desbravado. Há as imaginárias, as emocionais e as físicas. Ao cruzar a fronteira abrimos mão de nossa soberania e corremos o risco de ter nossas verdades postas à prova.

É um dia iluminado de outono. A fronteira de destino não me traz ameaça ou perigo, a não ser o risco de ser tomada pela emoção. Eu, meu marido, minha filha e minha tia partimos rumo a la más hermana de todas las fronteras del mundo: Santana do Livramento, onde nasci e vivi até os meus seis anos de idade. Três diferentes gerações compartilham o espaço do carro e a promessa de bons momentos. A integrante nonagenária da troupe garante o testemunho das histórias de quem viveu o dia a dia da terra.

Na estrada, do lado direito, coxilhas suaves tingidas de diferentes matizes de verde e extensões de rara amplitude para os olhos citadinos. Vacas, mais vacas. Do lado esquerdo, a mesma coisa. Olha aquela vaca ali, parece ser prima daquela que vimos mais atrás - diz o meu espirituoso marido, e nos faz explodir em risada, tomados pelo relaxamento compulsório da estrada. Bergamotas nos ajudam a passar o tempo e o seu aroma adstringente a disfarçar o cheiro de zurrilho em certos trechos da estrada. Lá fora, cercas acompanham as linhas do relevo e capões, feito tufos rebeldes, salpicam o campo. Casinhas de joão-de-barro empoleiradas nos postes cruzam a janela do carro em sequencia cadenciada.

Santana do Livramento tem uma fronteira sui generis, é uma fronteira de mescla, de soma. Lá, o simples cruzar de uma avenida determina a mudança de nacionalidade da terra Brasil para a terra Uruguai. E nada muda. Tudo se funde. Os dois países invadem-se carinhosamente. O português e o espanhol são intercambiados com naturalidade ou se mesclam deliciosamente. Os traços físicos, a maneira de se vestir, o hábito de tomar mate e o gosto pelo assado fundem-se em um só homem, o gaúcho fronteiriço ou gaucho.

Chegamos exalando pampa pelos poros. Sentimentos confusos inquietam-me com o suave bater de asas de borboletas em meu estomago. Frações de memórias acompanham meus passos pelas ruas da cidade.

Compras no free shop da Avenida Sarandi em Rivera. Dulce de leche e milhojas fresquinhas. Um encontro enriquecedor com uma mulher culta e bela, cuja avó era irmã da minha avó. Conversa calorosa. Mais compras: vinho tannat e alfajores. Tentar la suerte no cassino. No va más! Parilla e cerveza Norteña.

A cidade ganha uma nova dimensão à luz do meu amadurecer. O olhar do homem de sobrancelhas grossas e pele cor de oliva lembra os ares do meu pai. Ao cruzar a avenida, a imagem da mulher de traços nobres e trajar elegante me enche de saudade da beleza de minha mãe. A casa onde nasci pelas mãos de Dona Luizinha, a parteira, ainda conserva a cor cinza chumbo e a porta muito alta trabalhada com entalhes em madeira e um robusto trinco de bronze no centro. Pena que não pudemos visitar o Clube Campestre porque chovia.

Dois dias e duas noites na minha terra natal trazem o resgate de gerações.
Um brinde para celebrar o sucesso de nossa excursão e incursão ao passado! Missão cumprida. Matambre delicioso e incrivelmente macio. Chajá. Un té, por favor, para ajudar com a digestão.

Voltamos pela mesma estrada. Do lado esquerdo, ganado Angus, Hereford, Holandês, verde em profusão em diferentes tons, e do lado direito... bem, eu já contei. Só que, no percurso de volta, a imensidão da paisagem não mais se exibia distante, pelo lado de fora. Estava dentro de mim.

Ah, fronteiras!

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Claudia Paixão Etchepare

E-mail: claudia.paixao.etche@gmail.com

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